O senhor Leonel
Maio de 2003, tarde chuvosa de Primavera. Eu a Milú, a Lena e a Dona Alice saíamos do Hospital da Universidade de Coimbra sem estranhar aquela moinha que caía sobre nós, apesar do dia de sol da véspera.
Os pensamentos estavam demasiado turbados de preocupação, para nos darmos conta do tempo, embora, naquele dia quatro, em nada se suspeitasse que era o último dia em que víamos o Senhor Leonel com vida. Parecia, aquela moinha, a Primavera a chorar o que nos traria a madrugada.
Sabe senhor Leonel, dizia-lhe eu a brincar, nessa mesma tarde, como que para lhe atenuar o sofrimento, a sua barba ainda está mais preta que a minha! A máquina eléctrica de barbear contornava-lhe a face magra da doença como se através dela tentasse transmitir tanto carinho e gratidão que o meu sogro me merecia. Ai sim? Não me diga dizia ele contente (sempre fora um grande vaidosito) e esquecendo por momentos a dor como esquecia sempre quando perante qualquer conversa que lhe agradasse.
Uma vez, em 1976, resolvemos descer mais uma vez a ladeira do Baptista, (assim se chama essa descida da Rua do Brasil) , em direcção à baixa. Nós os dois éramos todos frenesim tal era a tarde que nos aguardava. Íamos ter com o Ti Zé Pinéu à tasquinha do costume da Rua da Louça e daí, até que a noite caísse, iríamos em romaria de quantos a nós se quisessem juntar, visitar as capelinhas da velha baixa num ritual já useiro entre eu o Senhor Leonel e o Ti Zé Pinéu, uma vez por semana, havia já quase dois anos. Desde que me casara com a Milú no dia em que o senhor Leonel completara quarenta e nove anos. Eis que indo a meio da Ladeira do Baptista avistamos o ti Flórido que saíra da porcalhota e vinha subindo no sentido do Calhabé, que soltou à laia de cumprimento:
Tu estás cada vez mais novo! Oh Leonel pra donde é a ida? Boa Tarde como estão? As últimas perguntas ficavam para resposta posterior, o que lhe importava era aquele "cada vez mais novo" proferido em tom franco que não escondia também uma certa lisonja propositada. Ai sim? Tu achas Flórido? A gente faz por isso e tem muito tempo para ficar velho, não achas? Dizia isso dando-me uma palmadinha cúmplice nas costas e esfregando as mãos de contente uma na outra como era seu costume quando estava feliz. Vamos até à baixa ter com o meu cunhado, vamos até à baixa!
O Ti Zé Pinéu era o irmão mais velho da Dona Alice e sempre fora uma grande alma e muito amigo, senão o amigo predilecto do senhor Leonel. Não fora o ti Zé ser do Sporting e o Senhor Leonel ferrenho do Benfica e a amizade era perfeita, mas só em dia de Benfica/Sporting as conversas tinham tom de picardia e era só nessas ocasiões que os dois cunhados afinavam um pouquinho um com o outro.
E lá seguimos rua abaixo.
Ao chegarmos à antiga Eléctrica das Beiras, que a revolução dos cravos houvera transformado em EDP, tivemos que fazer uma breve paragem para o senhor Leonel cumprimentar os seus colegas de serviço. Há quase vinte anos que o senhor Leonel deixara a vida dura da picareta para a trocar por uma confortável profissão de contínuo na velha Companhia, como ele lhe chamava carinhosamente. A princípio de casado, já com a Milú, filha mais nova de um ranchinho de três meninas, nascida, era de bicicleta que o senhor Leonel esquadrinhava a velha e serpenteada estrada que liga Penacova a Coimbra, de manhã, de tarde ou de noite conforme o turno que lhe calhava.
Muitas foram as aventuras pelas múltiplas curvas da velha estrada, ladeando o Mondego que escorria pachorrento em direcção a Coimbra e depois à Figueira. Mas de memória mais vincada, residia na família uma célebre partida do fundo da Cheira.
Nesse dia memorável fora a festa da Carvoeira, o senhor Leonel era um dos muitos convidados de casa do colega Daniel lá residente desde que nascera. Mais chanfana e mais broa da boa, iam escorregando uns bons copitos de tinto caseiro que era a vaidade de qualquer lavrador que se prezasse e o ti Daniel não era excepção nenhuma. Sim porque quem é filho da terra, apesar de ter bom emprego na Companhia, não deixa as raízes e continua sendo lavrador, vida fora.
Bebe mais um copito oh Leonel, come mais chanfana que ela inda está quentinha e bebe mais um copito que não é tarde ainda!
Pois pois, oh Daniel, mas ainda tenho que pedalar muito hoje e já me sinto bem... assim... a modos que um pouco quentinho! Dizia isto sorrindo como era sempre de sorriso aberto que normalmente falava às pessoas de quem gostava e, depois, lá ia estendendo os lábios, cautelosamente para não pingar a farda, ao copo de vinho morangueiro fresco que o Daniel acabara de lhe encher.
E neste andamento de um copo e outro, entremeado com chanfana e broa, as horas foram passando e, de repente, era chegada a hora de abalar para Coimbra de bicicleta, porque nisso de cumprir horários ninguém ensinava nada ao senhor Leonel. Fazia do relógio um escrupuloso ditador da sua entrada ao serviço. Oh Daniel agora é que tem que ser! Muito obrigado por tudo mas já vejo a minha Lenita, a Milú e a Alice do outro lado do rio com a minha merenda à minha espera!
Assim partiu como pôde na bicicleta em direcção à ponte, que havia que dar uma volta para retomar, no lado oposto do Mondego, o caminho em direcção à Aeminium. De cada pedalada, a luzidia pasteleira, curvava sob o peso do pé, para o lado em que este descia na pedaleira, e era assim aos ziguezagues que ele lá ia indo até chegar, passado um valente quarto de hora, ao pé da mulher e das filhas que já desesperavam pela demora e pelo andamento da carruagem.
Oh Homem como é que tu ainda vais para Coimbra nesse estado!? Bonito! Anda depressa que já estás atrasado! Se o senhor Leonel prezava horários, esse hábito estava ainda mais arreigado na dona Alice que, como que agradecida a Deus pelo trabalho actual do seu marido, faria tudo para que ele fosse um fiel cumpridor da dádiva que Deus lhes tinha dado. Anda homem! Ai como tu vais! És sempre a mesma coisa, vá monta lá na bicicleta outra vez que vem lá a camioneta na curva! Despacha- -te homem!
O senhor Leonel com o aviso da mulher quis apressar a abalada, mas como homem quentito, bicicletas e pressas nunca conjugaram bem, vai do homem meter o pé pelo interior do quadro dando de lado com a montada num derrapanço que só não lhe rasgou o joelho das calças da farda porque não calhou.
Ai Jesus! Ai a camioneta! Paizinho, oh paizinho! Gritavam já a Dona Alice, a Lena e também a Milú com quanta força lhe permitiam os seus verdes seis anitos, perante a visão da camioneta a travar a travar até que por fim estancou a centímetros do senhor Leonel. Muito aflito e conforme o vinho lhe deixava, tentava, a custo, levantar-se e à bicicleta em frente aquela montanha de ferro e rodas que estancara quase em cima dele. Desculpe senhor, eu nem sei como é que caí! Dizia ele muito envergonhado, olhando lá para cima para o motorista que de nariz no vidro o olhava de olhar reprovador e preocupado, Desculpe! Ia dizendo enquanto se chegava, a ele e à pasteleira, para a borda da estrada agora preocupado com a mulher e as filhas que, finalmente, o tornavam a avistar, a encostar a bicicleta ao muro, e o olhavam brancas e aflitas sem pinga de sangue que lhes desse cor ao rosto.
Oh homem aleijaste-te? Podias ter morrido!...O Pai está bem? Paizinho!...Perguntavam as três aflitas após o sucedido. Pronto pronto podia ter sido pior, dêem cá um beijinho, sossegava-as ele com a Milú, que correra a abraçá-lo de cabecita encostada à sua cintura, vá minhas queridas, já passou! Beijou-as a todas e lá se foi. Até amanhã se Deus quiser!
Oh homem tem juízo! Vai com cuidado que a estrada é muito perigosa agora ao anoitecer! E lá foi ele meio aos ziguezagues, curva após curva, até desaparecer dos olhares da dona Alice, da Lena e da pequena Milú que com o coração nas mãos regressavam à Cheira ladeira acima.
A mesma Cheira de onde era o ti Armando, também porteiro na EDP e casado com uma prima direita do senhor Leonel, de nome, Armanda, que agora se despedia dele, ao portão verde escuro onde estava de plantão. Vai com Deus Leonel e leva cumprimentos meus ao teu cunhado. Eu que ficara à espera, na esquina em frente ao parque da cidade, via-o apressar o passo na minha direcção, interrompendo-me os pensamentos que me tinham transportado, em doce reminiscência, até àquele dia 20 de Junho, quatro anos antes.
Havia feito naquele dia os meus dezassete anos, precisamente naquele bonito dia de fim de Primavera. E que Primavera tinha sido aquela de 1972 na minha vida! Completara o quinto ano, eu que estivera em risco de chumbar por faltas e, senão fora o empenhamento dos meus colegas do D. Duarte, encabeçados pelo meu mano, o Sarabando, em rogar à professora de canto coral para faltar enquanto eu me encontrava suspenso por quatro dias, das aulas, por castigo, é que reprovava mesmo!
Depois o União de Coimbra subira à primeira divisão pela primeira vez e toda a cidade se vestira de azul e vermelho por aquelas noites quentes de fogueiras, Espírito Santo e vésperas de festas da Rainha Santa.
E foi assim, em jeito de prenda de aniversário, naquela cidade festiva, que a Milú, após a saída das sete do trabalho, me disse que os pais dela tinham autorizado o nosso namoro. Que feliz eu fiquei! Nós ficamos! E entrelaçados num banco de jardim vermelho num dos nossos primeiros e longos beijos, lá festejamos o início do namoro. Começo de uma vida a dois que já leva, agora, trinta e um anos, dois filhos pelo meio e já um neto, o Francisco.
Vamos Paulo, dizia-me o senhor Leonel, chegando a mim num passo apressado como que a querer recuperar o tempo perdido na Companhia. Vamos!
Em poucos minutos atravessamos toda a avenida Navarro e depressa chegávamos ao Largo da Portagem onde, numa alta janela, se podia ler o nome de Adolfo Rocha - Médico, a assinalar o consultório onde Miguel Torga teria lavrado os "Novos Contos da Montanha", outros romances e tantos e tantos poemas de granito, dúvidas e certezas que fazem de um homem algo diferente e venerado pelos demais. Só os inúmeros Natais não tinham sido ali fabricados porque era seu uso passá-los em São Martinho da Anta e outros lugares que, raramente, Coimbra.
Descemos as escadinhas do Aeminium, atravessamos umas vielas e depressa estávamos na Praça Velha onde centenas de pombos esvoaçavam à medida que deles as nossas, apressadas passadas, se aproximavam. Era um abrir de alas de uma Primavera viva e estonteante representada naqueles pombos saídos do quieto pasto de grãos de milho pelo chão empedrado, para um esvoaçar que os levava a dar uma ida a um ou outro telhado para logo de seguida retornarem à interrompida refeição.
Pelo caminho tinha perdido a conta de quanta gente nos tinha cumprimentado já, de tal forma era o senhor Leonel conhecido por entre aquela gente simples, dali ou dos arredores natural, que faz de Coimbra algo mais que cartaz turístico de festa de estudantes, palco de figuras da cultura universal, de gentes letradas e de terra de medicina!
A dona Lurdes era mais uma das inúmeras pessoas que se tinha enraízado por Coimbra vinda de Pombal há muitos anos e que agora nos cumprimentava: - Então senhor Leonel está bonzinho? A dona Alice e as pequenas? O Paulinho está bonzinho? Referindo-se agora ao Paulo Jorge que era o meu cunhado mais novo, nascido já sem que ninguém contasse, já a Milú ia com dezassete anos e namorava comigo, e que contava àquela data três anos e pouco, atormentados por uma bronquite que, de vez em quando, o levava às urgências para estar umas valentes tardes a soro. Graças a Deus está tudo bem, está tudo bem! O meu Paulinho agora tem andado bonzito, o meu neto Mauricinho é que há tempitos nos pregou um grande susto, nem queira saber! Mas agora está tudo bem com ele e com os outros meus netos todos.
De facto o Maurício há poucos meses... estávamos numa manhã muito quente do mês de Fevereiro, tinha ele sete mesitos e estava meio adoentado com gripe. Acordámos e a minha mulher tratou de lhe dar o leitinho e vesti-lo. Quando lhe estava a vestir o fatinho ele, de repente, esticou-se e ficou roxo e completamente imóvel. Ficámos muito aflitos, o que se estaria a passar? Nós tínhamos muito pouca experiência, éramos muito novos e foi chamando os meus sogros (pois vivíamos na casa deles, na Rua do Brasil nº. 120) que nos ocorreu pedir socorro.
A dona Alice, que também nunca tinha presenciado nada igual, ficou igualmente muito aflita, mas num gesto reflexo, levou o bébé à casa de banho e molhou-lhe a cabecita com água fria.
Eu entretanto, vesti umas calças à pressa, calcei uns sapatos, agarrei no meu filho e corri para a estrada para mandar parar o primeiro carro que passasse. A minha sogra seguiu-me e desesperados colocamo-nos em frente de um carro que logo parou e nos transportou às urgências hospitalares do Hospital Pediátrico de Coimbra, por sinal onde o Maurício nascera quase um ano antes.
A meio do caminho (seguíamos a alta velocidade com as janelas abertas, a minha sogra no banco da frente com o menino ao colo e eu no banco de trás) a dona Alice dá um grito desesperado como se fosse o último recurso: Oh minha Rainha Santa acuda ao meu menino!
De repente o meu filho, pestanejou os olhos e abandonou aquela posição rígida e começou e mexer-se e a balbuciar um choro muito baixinho.
Nós continuámos até ao hospital pediátrico e foi quando fomos prontamente atendidos que nos disseram o que se tinha passado. O bébé tinha tido muita febre e entrou em convulsão. Disseram-nos também que a solução para esses casos era procurar arrefecer o bébé, despindo-o e colocando fraldas húmidas de água fria nas virilhas. Entretanto a Milú e o senhor Leonel chegaram ao hospital e, coincidindo com a chegada da mãe, o bébé começou a rir-se e a balbuciar na sua linguagem própria como que dizendo que estava bem e feliz por nos ter todos à sua volta.
Voltando atrás nesta breve história e associando a ela a explicação dos médicos, é provável que a cabecita do meu filho molhada e a apanhar o vento da janela aberta do automóvel a grande velocidade provocasse o necessário arrefecimento da criança para sair do estado de convulsão, mas que isso se deu precisamente logo depois da dona Alice se ter socorrido da Rainha Santa também é verdade. Fica aqui o mistério da Fé ou do simples acaso, mas feliz mistério.
Vamos andando dona Lurdes, vamos andando dê cumprimentos ao marido da senhora e aos pequenos.
Serão entregues! Adeus senhor Leonel! Adeus Paulo, dê beijinhos meus à Milú e ao menino!
Vamos Paulo, já agora subimos ali as escadas até à Visconde da Luz para vermos a Miluzita! Não acha?
Vamos pois! Disse-lhe eu muito agradado e agradecido a Deus por lhe ter dado tal ideia. Até aos dias de hoje, a simples visão da Milú, é um bálsamo para o meu corpo e espírito irrequietos, que eu não dispensava, nem dispenso, por nada deste mundo.
A Milú trabalhava já para quatro ou cinco anos na Casa dos Linhos e diga-se de passagem ela e a Helena, sua colega que tinha o mesmo nome da irmã, eram o encanto de todos quantos passavam à porta daquele estabelecimento, pois, sempre bem arranjadas e sorridentes, todas elas respiravam saúde e boa presença que fizeram a cobiça de todos os rapazes solteiros até que, um belo dia, inevitavelmente, casaram, para minha grande felicidade, diga-se de verdade.
Chegados à Casa dos Linhos, onde se podiam ver bonitos tecidos com os mais recentes estampados e belas colchas de casal dispostas criteriosamente nas duas montras que ladeavam a porta. Foi por essa porta que vimos surgir, sempre de belo sorriso na cara, a Milú que logo foi perguntando:
Olá, por aqui? Onde é que vão? O menino ficou com a mãe Paulo?
Ficou com a dona Alice, e nós vamos ter, ali a baixo, com o ti Zé Pinéu para lhe fazermos um pouco de companhia, a aproveitar a folga do teu pai! - Respondi-lhe eu após lhe dar um beijo e o senhor Leonel outro.
Vá, vão lá, vão, mas não se ponham a beber...oh pai veja lá para onde o leva! E dito isto deixou-se ficar na porta a ver-nos afastar por entre a multidão que àquela hora demandava as lojas comerciais da baixa ou, simplesmente, passeava.
A Rua Visconde da Luz e a Ferreira Borges sempre foram as ruas preferidas dos estudantes para se promenarem da Igreja de Santa Cruz ao Largo da Portagem e vice-versa, fazendo "piscinas" como era uso dizer-se por entre a malta.
Chegados à Praça 8 de Maio encontramos logo três de amigos do senhor Leonel que já nos esperavam para, enfim, rumarmos às capelinhas em amena cavaqueira e bom convívio, pois os copitos eram apenas o pretexto para aqueles passeios de "capela" em "capela" pondo em dia as últimas do futebol, dos familiares e conhecidos e das actividades pós-laborais de cada um. Claro que nunca se deixava de comentar a chegada ou partida de uma ou outra rameira aos bares da Rua Direita.
Boa Tarde senhor Gonçalves, está bonzinho? Pergunta alegremente o senhor Leonel ao chegar à esquina da Rua da Louça. Logo de seguida cumprimento-o eu e aos outros dois: senhor Gaspar, passou bem? Boa tarde senhor João! Eram três homens na casa dos sessenta, tanto o senhor Gonçalves, homem alto, meio calvo e de barriga proeminente, como o senhor João, que era o oposto, magro e excessivamente baixo e que fazia o senhor Leonel no seu metro e sessenta parecer um homem alto, eram reformados e viviam de pequenos expedientes para complementar a reforma que recebiam. Era o que aparecia: umas pinturas de paredes em algumas casas, umas serventias ou arranjos de pedreiro ou até uns arranjos eléctricos ou de canalizações. O senhor Gaspar era um sexagenário ainda activo que trabalhava nos escritórios da Companhia e que naquele mês de Abril se encontrava de férias. Homem elegantemente vestido, gravata benfiquista, camisa azul claro e fato acastanhado. O cabelo branco fazia-o supor mais velho do que era na realidade e moldurava-lhe de branco bem cortado e face sempre avermelhada.
Mal os cumprimentou e levando as suas duas mãos ao ralo cabelo sempre pintado de castanho escuro com todo o jeito e cuidado, não fora a fraca brisa que se fazia sentir naquela tarde, descompo-lo, o senhor Leonel remata em tom jocoso e referindo-se às novas presenças femininas nos bares da Rua Direita: Então que tal? Parece que há por aí novidades! Logo havemos de lá ir dar uma voltinha!
Vamos pois! dizia o senhor Gaspar compondo também o cabelo com a mão direita, antevendo a figura que impressionaria as jovens prostitutas que iriam visitar.
Ah pois vamos, mas agora vamos ali à tasquita beber um copo e ver se vimos o meu cunhado!
Ah! Ele estava ainda agora lá a acabar de comer uma buchazita! Vamos lá vamos! Dizia o senhor João metendo os pés ao caminho seguindo-nos a nós os quatro.
A tasquinha que o ti Zé Pinéu frequentava, havia muitos anos, era a meia Rua da Louça do lado direito de quem a descia vindo da Praça Oito de Maio. Escura, estreita e com mobiliário velho que se resumia a uns quantos mochos, quatro mesas minúsculas, um balcão de madeira coberto com uma velha pedra de mármore, detrás do qual estava um casal já de idade avançada de aspecto pobre mas sempre de sorriso nos lábios. Na mesa colocada à direita da tasca estava o ti Zé Pinéu, sentado num dos mochos e de copinho de vinho à frente.
Magro e alto, cabelo bem preto apesar da diade, meio curvado e sempre vestido com um fato preto, camisa branca e gravata preta, era assim o ti Zé.
Mal nos viu: Então meninos, por aqui? Está bem, está bem caneco! Está bom menino? ia dizendo à medida que nos ia cumprimentando um a um e com isso aproximou-se do balcão, de pé. Vamos beber um caneco, meninos? Vamos beber um caneco?
Bem a gente bebe, não é? Respondia o senhor Leonel, dando por começada a tarde de visita às capelinhas, que nos levaria naquela tarde a beber, aqui e acolá, mais de uma dezena de pequenos copos de vinho, que para o fim eram traçados ou mesmo só de gasosa.
Pelo meio, muita conversa, muita gargalhada, visitas aos bares da Rua Direita e às suas moçoilas só para ver o material como dizia o senhor Leonel. Sim porque que eu saiba nunca o senhor Leonel passou às vias de facto com nenhuma delas. O seu prazer limitava-se a deixar-se embevecer com a sedução sempre frustrada das meretrizes. Para o fim estava reservada um visita à Democrática para comer uns petiscos e beber um copito e finalizava-se mesmo, já só eu o senhor Leonel e o ti Zé Pinéu no Salão Brasil em volta de três bicas que o ti Zé Pinéu à dele fazia questão de acompanhar com um bagacito. Às vezes lá conseguia que nós o acompanhassemos na aguardente mas naquela tarde ficamos pela bica.
Bebe um bagacito menino, bebe um bagacito! Insistia o ti Zé enquanto mexia interminavelmente a sua bica.
Não Zé! Acho que hoje não vai! Foi uma grande tarde e por hoje já chega. Para a semana há mais não é Paulo? Perguntava o senhor Leonel esfregando as mãos de contente: Para a semana há mais! |